sexta-feira, 18 de março de 2016

Brasil virou país de advogados; cada um usa os fatos a favor de sua causa

Há 99 anos, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) publicou uma peça de teatro chamada "Assim é (se lhe parece)". Observar os acontecimentos das últimas semanas no Brasil através das redes sociais é como estar na plateia dessa peça centenária e tentar chegar a alguma conclusão que faça sentido em tempo real – sem saber até onde isso é possível neste momento de ânimos e gestos exaltados no país.

Os fatos são os fatos, goste-se deles ou não. Mas uma torrente apaixonada de interpretações de lado a lado tem afogado qualquer objetividade. O que temos, hoje, são versões e pontos de vista que pouco (ou nada) dialogam com seus contrários. É o que acontece na peça de Pirandello, onde cada um adapta as informações disponíveis às próprias convicções ou interesses.

Viramos uma nação de advogados, cada qual se agarrando a evidências (de culpa ou inocência, estamos em modo perigosamente binário) para defender seus clientes ou causas.

Nada escapa à guerra aberta de versões. Ninguém se contenta mais em ser mero espectador. Até mesmo não se posicionar – sobre o Lula, a Dilma, o Moro, o Delcídio, a manifestação, a babá ou a babá da babá – é proibido: os que escolheram não escolher lado têm sido xingados de "isentões". Com este carimbo, vem a condenação: ou você concorda com o meu lado ou você é conivente com os "golpistas".

O problema é que não há consenso sobre de onde virá o "golpe".
Há quem diga que ele está sendo forjado pela oligarquia branca e alérgica ao povo, com o apoio massificante da "grande mídia" e a inocência útil de 3,6 milhões de pessoas incapazes de pensar, que foram às ruas pedir a renúncia ou o impeachment de Dilma no último domingo.

Outros garantem que foi Lula, suspeito de crimes na Operação Lava Jato, quem virou a mesa; ao se tornar ministro-chefe da Casa Civil, ganhou espaço para manobrar contra o impeachment e as investigações.

Há os que defendem a tese do autogolpe: ao levar Lula de volta ao Palácio do Planalto, Dilma se colocou como figura meramente decorativa. E há ainda os que afirmam que o golpista é o juiz Sergio Moro, que escolhe a dedo os vazamentos de grampos telefônicos e delações premiadas apenas para prejudicar (insira aqui o seu prejudicado: Aécio, Lula, Dilma, Renan, Temer, Cunha, Odebrecht...). 

Assim é, se lhes parece.

O mesmo exercício de retórica (ou "farsa filosófica", diria o dramaturgo) ocorre com as delações. Especialmente a do senador Delcídio do Amaral, compartilhada e comentada largamente – desde que o denunciado jogue no outro time.

Idem para os áudios vazados de Lula: ?

O clima é de histeria coletiva, como a que toma a cidadezinha do sul da Itália onde se passa a história de Pirandello. O episódio da babá no domingo de protestos é um exemplo.

Pouco adiantou ela própria ter dado entrevista e dizer que prefere usar o uniforme a gastar as próprias roupas no trabalho. Houve quem a chamasse de "capitão do mato" por não se revoltar contra a opressão de seu patrão – para "piorar", o sujeito é banqueiro, torce pro Flamengo e aparece na foto vestido de verde-e-amarelo, as cores dos "coxinhas". E as escolhas da mulher, como ficam?

Muita gente viu racismo explícito neste episódio, assim como houve quem tenha dito que a volta de Lula ao poder foi uma vitória do... machismo. A tese da peça de Pirandello, encenada por todos nós neste exato momento, é de que o relativismo extremado frustra e abala as relações sociais. E não é difícil que descambe para a violência.

Um casal foi agredido por manifestantes pró-impeachment na avenida Paulista na última quarta-feira simplesmente porque tinha uma bicicleta vermelha (!) e "cara de petistas".

Mas será que eram mesmo do PT? O vídeo que mostra o episódio não deixa claro. É uma cena de violência gratuita. Mas assim é, se lhes parece. Ou, como diz a controversa senhora Frola no fim da peça do dramaturgo, "eu sou aquela que se crê que eu seja".

O fato de que não existe apenas uma verdade, mas pontos de vista que muitas vezes são opostos – e plausíveis – não pode ser motivo para romper contratos sociais, como a liberdade de expressão, o direito de ir e vir e o combate à violência. O fim do diálogo é o triste início dos totalitarismos. Temos que refletir muito. E voltar a conversar.

Ricardo Calazans, jornalista e colaborador da BBC Brasil



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